22/01/2018
Segue o seco
Em 2017, a escassez d’água ditou o curso do Velho Chico. Nesta reportagem fazemos um balanço de perdas e danos sociais e ambientais – e apontamos a direção do CBHSF para salvar o rio que banha o interior do Brasil
“É cada vez mais difícil viver da pesca. Ano a ano assistimos o rio secar, formando ilhas onde antes só existia água. Muitos pescadores se viram obrigados a deixar seu ofício porque não tem mais peixe”, disse o pescador Manoel Eduardo Souza, morador da redondeza de um dos maiores lagos artificiais do mundo, o reservatório de Sobradinho, no norte da Bahia, situado na região do Submédio do São Francisco. Tal qual o Velho Chico, Seu Manoel resiste.
Dona Amarilda Campos dos Santos também. Há 33 anos vivendo na comunidade de Lagoa dos Gomes, no semiárido baiano, ela acompanha a agonia da Lagoa de Itaparica, a maior da Bacia do São Francisco, situada entre as cidades de Xique-Xique e Gentio de Ouro. Com 24 quilômetros de extensão, cercada de árvores nativas da Caatinga, o que se vê hoje está longe de lembrar a paisagem de outrora. Estima-se que cerca de 50 milhões de peixes já tenham morrido, de acordo com os cálculos do IBAMA.
“A lagoa é uma mãe. Dá muita tristeza ver tantos peixes morrendo e os animais de um lado para o outro procurando onde beber. A situação está difícil para todo mundo que vive dessa lagoa”, comentou Dona Amarilda.
Em 2017, o São Francisco enfrentou a pior crise hídrica de sua história. Seu Manoel e Dona Amarilda figuram num cenário que atinge diretamente todos os estados cortados pelo rio: Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Goiá, além do Distrito Federal. Isso, sem colocar na conta os locais que sofrem os impactos indiretamente.
Para Valmir Pedrosa, pesquisador e professor da Universidade Federal de Alagoas, especialista em recursos hídricos, é difícil mensurar o impacto da seca do Velho Chico. Ele acredita que todos saem prejudicados, direta ou indiretamente, com a baixa produção de peixes, o impacto na agricultura, na geração de energia e no saneamento, por exemplo.
“A falta de água do rio afeta todo mundo, do pescador ao morador da cidade grande, passando por agricultores, indústria, empresas geradoras de energia. São muitos os desdobramentos que atingem uma rede gigante de setores e pessoas que se relacionam direta e indiretamente com o São Francisco”, disse Pedrosa. “Há que se pensar: de onde vem a energia, o alimento, a água que consumimos direta ou indiretamente? Um exemplo é que dia desses uma pessoa de Feira de Santana, interior da Bahia, me disse que depende da chuva no São Francisco, pois o milho que alimenta sua criação de frango é comprado de uma região que precisa dessa água para a produção. Comprar o milho em outro lugar seria inviável financeiramente e poderia colocá-la fora do mercado”.
Ao listar os pontos mais críticos, o pesquisador destacou a situação de Paracatu, em Minas Gerais, e de todo o território baiano: a barragem de Sobradinho; o rio Salitre, ambos no norte da Bahia; e da cidade de Correntina, oeste baiano, município abastecido pelo Rio Arrojado, afluente do Velho Chico. Para Pedrosa, a solução para a escassez hídrica exige preservação das nascentes, reflorestamento, reuso da água e eficiência no uso, a exemplo da adoção de métodos de irrigação como microaspersão e gotejamento, além do cadastro e controle de usuários. A foz é outro ponto frágil: “Com a salinização já tem 12 quilômetros de água do mar dentro do continente. Piaçabuçu não consegue mais capturar água do rio durante a maré alta, já que o mar avança”, explicou.
Vista aérea do lago de Sobradinho
A união faz a força
A capacidade de geração de energia do Velho Chico caiu quase 40% desde 2002. O reservatório de Sobradinho, norte baiano, responsável por cerca de 70% da energia transmitida para a região Nordeste, estava, até outubro, com apenas 3,6% do seu volume útil, operando com uma vazão de 550m³/s, a menor já registrada. Vale lembrar que um importante polo de fruticultura irrigada do país, localizado em Petrolina – Juazeiro é abastecido com a água de Sobradinho.
A Barragem de Xingó, entre Alagoas e Sergipe, também teve o funcionamento reduzido. Grande produtora de energia, além de colaborar com a irrigação local e com o abastecimento de água para a sergipana Canindé, chegou a operar com apenas uma de suas seis turbinas.
Com 2.683 quilômetros de extensão – percorrendo seis estados e o Distrito Federal, num total de 507 municípios – contemplando 15 milhões de pessoas, pode-se afirmar: a morte do São Francisco representaria a maior tragédia social e ambiental do Brasil. E a solução não vai cair do céu. Segundo o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Anivaldo Miranda, a seca prolongada é apenas uma gota no oceano de problemas. A agonia do Velho Chico é a crônica de uma tragédia anunciada ao longo dos anos: assoreamento, desmate das matas ciliares, erosão, sobreuso das águas, represamentos e poluição.
Para devolver ao rio a água, seria preciso frear ações degradantes e colocar em prática uma gestão mais eficiente – com ou sem chuva. O caminho, para Miranda, é ouvir a população e chamar os diversos órgãos e segmentos da sociedade para debater a questão, num exercício de gestão descentralizada.
“É necessário o comprometimento de todos, incluindo os órgãos públicos, os empreendedores da iniciativa privada e os usuários, que devem juntos se empenharem em cumprir o Plano de Recursos Hídricos da Bacia”, enfatizou o presidente do CBHSF.
Ele argumenta que “há um enorme descompasso entre a legislação dos recursos hídricos e sua aplicação prática. Os órgãos gestores, principalmente no nível estadual, não conseguiram ainda implementar em grande escala os instrumentos necessários para a eficácia da gestão”. Miranda defende também a implantação mais acelerada dos mecanismos prioritários previstos na chamada Lei das Águas (9.433/97), tais como: universalização da cobrança e das outorgas para o uso das águas do São Francisco, enquadramento dos mananciais, execução dos planos de bacias e fortalecimento dos Comitês de Bacias.
E mais: acredita que é preciso melhorar os instrumentos de monitoramento da qualidade e quantidade das águas e enxergar a água subterrânea como ativo estratégico para o País.
Sabe-se, por exemplo, que a maioria dos municípios que fazem parte da Bacia Hidrográfica do São Francisco não possui tratamento de esgotos domésticos e industriais. É tudo lançado diretamente nos cursos d’água. Além disso, várias Sub-Bacias não têm planos diretores, não contam com cadastro de usuários atualizado, nem com um sistema de qualidade das águas. Outra questão é o sistema de cobrança, que ainda precisa evoluir.
Água de valor
Os danos causados pela escassez hídrica na Bacia do Rio São Francisco dão ideia de como ela é vital para o País. É dessa realidade que emerge uma equação: qual o valor da vida que ela ajuda a prover? A metodologia de cobrança pelo uso de recursos hídricos da Bacia figura como um instrumento imprescindível para a gestão das águas, principalmente num momento de crise e desgaste de anos de sobreuso e exploração ambiental.
O diretor técnico da Associação Executiva de Apoio à Gestão de Bacias Hidrográficas Peixe Vivo (Agência Peixe Vivo), Alberto Simon, vem dialogando com diferentes atores envolvidos com o rio sobre o tema. Em sua fala, ressalta a importância de atribuir valor à água como forma de estimular o uso racional por usuários de setores como indústria, mineração, saneamento e agricultura.
Na nova proposta estão previstas mudanças como: possibilidade de medir vazões realmente utilizadas; estabelecimento de coeficiente de boas práticas; cobrança do lançamento de efluentes pela vazão que ficará indisponível no curso de água e atualização dos preços públicos unitários (PPU) em 20% que, segundo Simon, estavam defasados. “A ideia da nova metodologia não é arrecadar mais, queremos induzir as pessoas a realizarem boas práticas do uso da água”, explica.
Vidas secas
Percorrendo o São Francisco, subindo ou descendo o Velho Chico, a situação é de penúria. Na foz, um grave drama: a salinização. Sem forças para correr para o mar, o rio vem sendo invadido por ele. A situação é mais crítica na cidade de Piaçabuçu, a 135 km de Maceió. Ao todo, somam-se 40 mil pessoas afetadas pela salinização das águas. Cada uma delas, com sofrimentos e pelejas individuais. As autoridades sanitárias detectaram até o aumento do número de hipertensos na região, devido ao elevado teor de sal na água.
“Sou do tempo em que os pescadores voltavam para casa com o barco forrado. Estamos vendo o rio morto, morto. Antes era canoa cheia de piolombetas, agora nem para comer”, disse o pescador Durvan Gonçalves, 73 anos, nascido e criado naquela foz.
A crise hídrica atinge também os rios afluentes. O Salitre é um exemplo da tragédia que se propaga: ele nasce no município de Morro do Chapéu, na porção norte do estado da Bahia, e percorre cerca de 333 quilômetros até desaguar em Juazeiro.
“O Rio Salitre já deixou de ser perene há alguns anos e hoje vemos com grande preocupação a falta de conscientização de muitos que insistem em utilizar esse recurso sem os cuidados necessários. A região da cachoeira é um dos exemplos mais evidentes dos abusos. Aproximadamente 3 quilômetros depois da queda d’água, o rio já não existe mais”, desabafou Maria Angélica Lemos Soares, moradora da comunidade.
Correndo em Minas Gerais, o Rio Paracatu é outro triste exemplo. Responsável por drenar mais de 40 mil km², o maior e mais caudaloso afluente do São Francisco está à mingua. Atividades agropecuárias e minerárias, que são o alicerce da economia da região, foram comprometidas. Além disso, tem sido comum o abastecimento ser complementado por caminhões-pipa em rodízio entre os bairros de Paracatu, município mais populoso da Bacia
Rio Paracatu, localizado em Minas Gerais, é um dos principais afluentes do São Francisco e está enfrentando uma seca sem precedentes
“Nós não temos mais a vegetação que tínhamos no passado e, sem ela, não se tem água infiltrando no subsolo para alimentar as nascentes. Outra problemática são os inúmeros poços artesianos que rebaixam ainda mais o lençol [freático], e usuários que, mesmo tendo autorização para usar uma certa quantidade de água, usam muitas vezes mais”, lamentou o secretário do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paracatu, Antônio Eustáquio Vieira, mais conhecido como Tonhão.
Para se ter uma ideia dos prejuízos, o território da Bacia Hidrográfica do Rio Paracatu corresponde a 17,64% do território da Bacia do Rio São Francisco, abrangendo 16 municípios. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 sinalizam que a população total que vive no trecho é de 280.736 mil habitantes.
Várias iniciativas estão sendo feitas para reverter esse quadro: “estamos criando ferramentas para contribuir com um uso mais racional das águas e dar condições ao Comitê de desenvolver ações de mobilização da comunidade, de levar conhecimento à sociedade. Além disso, estamos planejando a elaboração do Plano de Gestão de Águas da Bacia do Rio Paracatu”, declarou o Tonhão.
Um sonho adiado
Há quatro anos, o Sr. José Brasil cumpriu um plano audacioso: fez de um barco a sua casa. E o fez no sentido mais literal da palavra – exceto o casco, comprado na Bahia, e a pintura automotiva, a embarcação foi inteiramente construída por suas próprias mãos. A meta era viver navegando nas águas do Velho Chico, desde Pirapora, em Minas, até Sobradinho, na Bahia. O sonho encalhou na foz do Rio das Velhas, no município mineiro de Várzea da Palma. Este é o quarto verão, estação chuvosa por lá, que Seu José tentará zarpar.
Por Andréia Vitório
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