07/04/2017
Quando o rio não corre para o mar
Moradores de Piaçabuçu, cidade situada na foz do São Francisco, contam como é sobreviver à salinização das águas
(Crédito: Antelmo Leão)
Texto: Vitor Luz e Fotos: Edson Oliveira
Aos 73 anos, nascido e criado em Piaçabuçu, onde o São Francisco encontra o mar, Durvan Gonçalves é, ele próprio, uma foz – de memórias. Aposentado há pouco mais de uma década, passou a vida inteira dentro do rio: “Sou do tempo em que os pescadores voltavam para casa com o barco forrado”. A fartura era tanta que Seu Durval, como é conhecido no município de 19 mil habitantes, situado no estado de Alagoas, criou 12 filhos, todos “estudados”, como faz questão de ressaltar. “Estamos vendo o rio morto, morto… Antes era canoa cheia de pilombetas, agora nem pra comer”, afirma, olhando desolado para aquele pedaço de São Francisco sendo engolido pelo mar.
A situação na cidade é, de fato, crítica. Piaçabuçu encontra-se entre os municípios mais afetados pela salinização das águas, ocasionada pela baixa vazão do São Francisco. Sem forças para correr para o mar, o rio vem sendo invadido por ele. No último dia 5, a direção do CBHSF reuniu-se com membros da Comissão Processante do Conflito pelo Uso, representantes dos órgãos nacionais competentes e representantes dos moradores. O encontro aconteceu em Salvador. Foram mais de cinco horas de debates na audiência de conciliação e o resultado poderia ter sido mais satisfatório, segundo o presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda.
“Poderia ter avançado muito mais, economizado tempo e até recursos se alguns atores importantes nesse contexto, a começar pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas também a Agência Nacional de Águas (Ana), Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e o Ministério da Integração, estivessem participando”, ressaltou Miranda. “Quando convocamos tais instituições, não fazemos um convite social. Estamos chamando para, ainda no terreno da conciliação, na construção de consensos, ajudarem a encontrar solução para um problema que atinge milhares de pessoas na foz do São Francisco. É uma questão de saúde nacional”.
Anivaldo Miranda na audiência de conciliação em Salvador, Suely Soares no povoado de Potangy e visão aérea do Rio São Francisco em Piaçabuçú
Ao todo, somam-se cerca de 40 mil pessoas afetadas pela salinização das águas. Cada uma destas pessoas com sofrimentos pessoais e pelejas individuais. A dona de casa Regiane Vieira sempre lavou roupa no rio. Ela conta que antigamente até dava para lavar de “ganho”, fazendo um dinheirinho extra, mas, atualmente, um pacote de sabão com cinco barras não é suficiente para uma trouxa. “Quando esprememos a roupa sai uma espuma amarela, a água fica parecendo uma nata de leite, toda cortada, em pedaços mesmo”, lamenta. Outro problema, segundo Regiane, é a necessidade de correr toda vez que a maré baixa, sem perder tempo. Na vazão, a água fica menos salgada e é, nesta hora, que se enchem os baldes.
“Sinto falta de água boa, da fartura de peixes. Rezo para que chova bastante para o rio encher. Gostaria que a água melhorasse, pois vivemos da pesca e se ela arriar acabou-se tudo”, desabafou a dona de casa.
A profissão de pescador é uma das mais antigas do mundo e, em Piaçabuçu, é passada de pai para filho. Assim foi com Pedro Lucas, 17, que recebeu-a de herança do pai, Tadeu dos Santos, 51. O pai tira – literalmente – o chapéu para falar do velho Chico: “Era fundo, fundo, agora a gente anda a pé por ele. Nem enchente temos mais. O peixe está difícil, antes dava muita manjuba, pegávamos 150kg a 200kg de uma vezada, hoje só conseguimos 2kg no máximo”.
Pescadores de Piaçabuçú
Pedro Lucas é o último dos herdeiros de Tadeu e, há 10 anos, aprendeu o ofício. De acordo com o garoto, “a pescaria está ruim mesmo e a água está salobra. Essa profissão foi passada para mim pelo meu pai, mas não desejo passar para meus filhos, inclusive estou me interessando mais pelos estudos, para deixar de ser pescador, pois não consigo mais visualizar futuro no rio”.
O futuro é repleto de incertezas para tanto para o filho quanto para o pai. “Quando meus netos nascerem eles não poderão mais alcançar esse rio. O que está acabando com o rio são os desvios, vemos a hora de Penedo virar sertão”, diz Tadeu.
Contra a correnteza
Todo pescador que sai ao rio ou ao mar, na busca do seu sustento, necessita de um barco de madeira e o carpinteiro responsável pela construção de boa parte das embarcações de Piaçabuçu é Cícero Cruz. Ele se diz pescador de coração, mas, pelas forças das circunstâncias, tem se concentrado na carpintaria. “A construção de embarcações não está parando, não tem como parar, o pessoal não tem outra opção de sustento. Estão indo mais para o mar agora”, ressalta.
Enquanto todo mundo se preocupa com a água, Cícero se preocupa com as florestas: “Sem madeira, não tem barco bom, e estão desmatando tudo. As embarcações de madeira são muito mais seguras para a pesca em alto mar. Os barcos de fibra servem apenas para turismo. Entre a cruz e a espada, estamos indo, a gente se preocupa com o rio e com a terra, mas o que podemos fazer?”.
Para ele, a solução seria cuidar ao invés de apenas explorar: “Meu sonho é que os governantes parassem de focar na transposição e focassem na revitalização do São Francisco. Desejam tirar até a última gota de água daqui. Uma empresa dessas, tão rica, que sustenta 50% dos nordestinos e que dá o sustento para todos eles, deveria ser tratada com mais respeito, dignidade e amor”.
Questão de saúde
A salinização das águas do São Francisco, para a técnica em enfermagem Ana Maria Santos, diretora do Programa Saúde da Família, está se tornando uma questão de saúde pública. “O índice de hipertensão aumentou. O sal está contribuindo pra isso. Daqui a 10 anos vai ser muito difícil, não teremos como sobreviver. Se ninguém tomar uma atitude não poderemos mais existir e pode ser que nossas crianças não encontrem um futuro”, desabafa.
Ela coloca a culpa na transposição: “O que fez isso acontecer foi a transposição, não viram que isso afetaria tantas famílias. Tiraram de uma mão para colocar em outra. Os ribeirinhos estão sofrendo. O meu pedido seria pensar com carinho e fazer diferente, nós merecemos”.
No povoado de Potengy
Há 17 anos, o povoado de Potengy, município de Piaçabuçu, conta com o trabalho árduo da Agente Comunitária de Saúde, Suely Soares. Nascida e criada na comunidade, ela resolveu investir nos estudos, quando a salinização do rio começou a prejudicar as plantações de arroz, de onde os pais tiravam o sustento. Em busca de sobrevivência, foi para Maceió, onde ficou hospedada com parentes até concluir os estudos. De volta à casa, quer ajudar a salvar a sua terra e os seus conterrâneos.
Ana Maria Santos, moradora de Piaçabuçú e Suely Soares, Agente Comunitária de Saúde
De acordo com Suely, a hipertensão só era percebida em idosos. Atualmente ela tem recebido muitos jovens e adultos com os sintomas. “Estamos com muitos gastos com remédios para hipertensão. As pessoas não podem comprar água mineral. Alguns podem buscar água nos poços, mas e os idosos? O que resta a eles é consumir a água do rio. Acredito que seja mais barato cuidar do rio do que comprar os remédios”, ressalta. “Quero pedir em nome da minha comunidade que os gestores tenham consciência. Façam, pelo menos, mais poços artesianos. Se não investirem em nossa saúde, vão gastar cada vez mais com medicamentos”.
Futuro
“Ao longo do São Francisco nós temos hidrelétricas, que reduzem o potencial hídrico do nosso rio, reduzindo a sua vazão para manter uma matriz produtiva nacional”, diz o Secretário de Turismo e Meio Ambiente de Piaçabuçu, Otávio Augusto. “Como Engenheiro Ambiental, acredito que nossa matriz energética nacional já possua um potencial bastante diversificado e precisa ser explorada, de maneira que possamos tirar a carga de responsabilidade do São Francisco”.
Otávio Augusto, Secretário de Meio Ambiente de Piaçabuçu e Dona Maria Francisca moradora da região da foz do São Francisco
Segundo o secretário, o futuro reserva boas novas: “Potengy é o município mais próximo da foz e a água está toda salinizada. Vamos instalar uma estação de tratamento compacta de água, bancada pelo Comitê de Bacias do São Francisco”.
Outra novidade é que a condição crítica do município de Piaçabuçu foi reconhecida pelo Ministério da Integração no mês passado, o que gerou um aporte de aproximadamente dois milhões de reais para investimentos em mudança de captação. Até o fim do mês de abril, o processo de contratação será iniciado. “Temos certeza que com essa mudança de captação vamos fugir da cunha salina e vamos ter um período maior para tentar uma estrutura de saneamento para resolver de uma vez por todas essas deficiências do abastecimento”, completa o secretário.
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