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08/01/2018

Os viajantes

Como era o São Francisco no século 19, quando o Brasil ainda engatinhava? Um mar de água doce correndo no interior do país selvagem? Que sentimentos despertava no marinheiro de primeira viagem? Nestas páginas, você vai conhecer um pouco das histórias de quatro desbravadores, que deixaram um legado imenso, em forma de livros, mapas, descobertas botânicas, zoológicas, etnográficas – e, principalmente, relatos pessoais que narram a vida no Velho Chico 200 anos atrás: o alemão Heinrich Halfeld, os bávaros Johann Baptist Von Spix e Carl Von Martius, o francês Auguste de Saint Hilaire e o inglês Richard Burton.

Heinrich Halfeld 

A povoação de Pirapora é composta de 30 a 35 casinhas cobertas de capim ou palha de coqueiro, habitadas por uns pescadores e suas famílias, que se ocupam de apanhar peixe, secá-lo ao sol sobre varais e vendê-lo às tropas. As tropas levam o peixe para as cidades, vilas, arrais e serviços de mineração do distrito de Diamantina”.

Foi assim que o engenheiro alemão Heinrich Wilhelm Ferdinand Halfeld descreveu o povoado que encontrou no norte de Minas Gerais, de onde partiria para uma viagem de dois anos, de 1852 a 1854, encarregado pelo governo imperial de traçar o primeiro estudo aprofundado do Velho Chico, com mapas e relatos. Os mapas de Halfeld são uma obra prima. Não possuem coordenadas geográficas. Mas, elaborados em escala rigorosa, representaram pela primeira vez o desenho do Rio São Francisco.

Corria o ano de 1825 quando ele desembarcou no Brasil. Viera a bordo do veleiro “Doris” para integrar o imperial Corpo de Estrangeiros, formado por Dom Pedro I. Onze anos depois, fora nomeado “Engenheiro da Província de Minas Gerais”, fincando residência na Vila Rica, hoje Ouro Preto. Sua primeira missão foi construir uma estrada de ferro. No ano de 1852, enfim, chegou ao Rio São Francisco.

Percorreu cerca de dois mil quilômetros, 382 léguas. Descreveu os tipos de embarcações e de peixes de cada trecho, detalhou a variação da altura dos barrancos e assinalou os trechos mais estreitos e largos, profundos e rasos, calmos e agitados. As margens eram mais baixas e as águas mais velozes nas proximidades da cachoeira de Paulo Afonso. Diante das dificuldades da navegação, concluiu que o trecho exigia “um corretivo”.

O trabalho de Halfeld rendeu o “Atlas e relatório concernente a exploração do São Francisco, desde a cachoeira de Pirapora até o Oceano Atlântico”. Ele terminou de escrever o relato em 1858, na vila de Santo Antônio do Paraibuna, atual Juiz de Fora.

Spix e Martius 

Em 1817, os naturalistas bávaros Johann Baptist Von Spix e Carl Von Martius desembarcaram no Rio de Janeiro. Chegaram na comitiva da princesa Leopoldina, noiva de D. Pedro I, e logo partiram Brasil adentro, numa expedição cujo destino final era a Amazônia. Foram três anos de estrada: quatro mil quilômetros de norte a sul e seis mil quilômetros de leste a oeste. Pelo caminho, a dupla seguiu coletando plantas, animais, artefatos. E produzindo arte: desenhos, gravuras de metal, litografias, diários. A primeira vista do Rio São Francisco ficou registrada.

“Cheios de alegria avistamos o São Chico passar suas ondas espelhentas em majestosa calma diante de nós. Depois de tantas atribuições e desventuras, a margem do abençoado rio hospitaleiro”, anotaram no diário que deu origem ao livro “Viagem pelo Brasil”.

Exatos duzentos anos depois, sabemos que a produção científica de Spix e Martius sobre o São Francisco foi impressionante. Não se limitaram à taxonomia e à botânica. Escreveram sobre plantas medicinais, fizeram observações fitogeográficas, estudaram etnografia, línguas, os costumes indígenas, além dos incontáveis desenhos da fauna, flora e do povo ribeirinho.

Navegar pela obra da dupla é como ultrapassar a barreira do tempo, chegando a uma época em que o Velho Chico vivia o seu esplendor. Era uma movimentada via fluvial, com barcos subindo e descendo as Gerais. No caminho, muitos engenhos: “A produção é quase que exclusivamente de rapadura parda, sendo a maioria despachada rio abaixo para a província da Bahia”, contaram. Eles se impressionaram com a abundância de peixes, tanto no rio “Chico” quanto nos afluentes. E também se assombram com a quantidade “de espécies de animais fantásticos”.

Para os viajantes, o Buriti “era um dos mais belos produtos do mundo das plantas”. As caçadas rendiam “caititus, veados, onças e antas”. Sobre as mulheres, fizeram uma anotação curiosa: “a fertilidade delas e o crescimento da população no norte de Minas é um dos fenômenos mais prodigiosos”. De acordo com o texto, entre os Rios Verde Grande e o São Francisco, já viviam “10 mil almas”.

Nas centenas de anotações, encontram-se descrições de lugares como Carinhanha, Juazeiro ou Contendas do Sincorá. Spix e Martius escreveram sobre febres endêmicas e inflamações no abdome dos ribeirinhos. Encantaram-se com os tropeiros, que carregavam em estranhos arranjos “açúcar, cachaça, farinha e fumo para trocar por sal”. E ficaram admirados com a navegação frenética de “simples barcaças e ajoujos, canoas amarradas, uma do lado da outra”.

“Temos certeza que, de São Romão até Juazeiro, na Bahia, logo os povoados vão se transformar em prósperas cidades”, arriscaram uma previsão.

Entre reclamações dos mosquitos, das noites incandescentes, da falta de estrutura, acabaram por se deparar com o destino de toda a riqueza que comiam com olhos: a pequena sociedade dos barões de terra. Convidados por uma fazendeira rica, já adentrando o estado de Alagoas, para uma festa, anotaram: “Solenizaram-se, com decoro e pompa. Assistimos a variados festejos da igreja entre outros inteiramente novos para nós. Ao voltarmos da solenidade, deparamo-nos com as mais finas iguarias e vinhos escolhidos. Como são deliciosos os doces do Brasil”.

Saint-Hilaire

O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire aportou no Brasil em 1816, com a Missão Artística Francesa. Nos seis anos que se seguiram, viajou pelas províncias de Minas Gerais, Goiás, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia. O encontro dele com o Velho Chico foi um assombro. Na companhia de guias locais, embrenhou-se na mata, seguindo as trilhas na Serra da Canastra. E, de repente, ao ouvir o barulho forte de água correndo, deparou-se com a cachoeira de Casca d’Anta.

Ali nascia o Velho Chico: “Um belo lençol de água branca e espumosa que se expandia lentamente, parecendo formar flocos de neve. As suas águas caiam desordenadamente, por uma encosta escarpada para formar o famoso Rio São Francisco”. No livro “Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goyaz”, Saint-Hilare registrou o momento em detalhes: “O leitor deve imaginar estar vendo em conjunto tudo o que a natureza tem de encantadora: um céu de azul puríssimo, montanhas coroadas de rochas, uma cachoeira majestosa, águas de uma limpidez sem par, o verde cintilante das folhagens, as matas virgens, que exibem todo o tipo de vegetação tropical”.

Da Canastra, ele seguiu em busca do sertão, onde acreditava estar o futuro do Brasil: “Restar-lhe-ão sempre gordas pastagens, terras férteis, e um rio que navegável em imensa extensão, estabelecerá úteis comunicações entre o país e o oceano”. Há 201 anos atrás, um francês já percebera a missão do Velho Chico de interligar o país. Gastou longas páginas descrevendo o comércio, a troca entre diferentes regiões, propiciada única e exclusivamente pelo hoje chamado rio da integração nacional.

Ao longo do caminho, Saint-Hilaire encontrou a paz e o inferno. No norte de Minas, conheceu Seu Felisberto, que se tornou personagem no seu relato. Morava num casebre, desprovido de qualquer conforto: “Leite e feijão no nosso jantar. E, por leito, me deram um colchão de palha sem lençol. Mas tudo me foi oferecido de tão bom coração que me encantei por esta gente”. Em sua passagem pela comarca de Paracatu, depois de prolongada seca, ele não foi tão benevolente: “Alojamentos detestáveis e hospedeiros ignorantes e estúpidos”.

O comércio, os costumes, as diferenças culturais e comportamentais de região a região, a infinidade de espécimes de plantas, o botânico francês observou tudo. Sua obra é vasta – e abrange uma riqueza de detalhes imensurável. Ao se despedir do São Francisco para adentrar o estado de Goiás, deparou-se com o mais lindo por do sol que jamais vira: “O céu era da mais bela cor de púrpura, o rio refletia essa cor brilhante, uma calma profunda reinava na natureza, algumas canoas pareciam voar sobre as águas e nem sequer enrugavam a superfície”.

Richard Burton

Há algo de majestoso no aspecto do São Francisco, cujas águas turvas, aqui se elevando, ali se abaixando, acolá correndo em silenciosa grandeza, espalhadas pela brisa suave e refletindo o ouro e o azul do céu, assumem um aspecto enraivecido, triste e implacável quando algum obstáculo de excepcional importância barra seu caudaloso curso”.

Foi assim que o capitão inglês Richard Francis Burton descreveu o Velho Chico no livro “De canoa de Sabará ao oceano Atlântico”. Sua aventura no Brasil começou em 1865. Dentre os viajantes, talvez seja ele o mais fascinante do século 20. Foi soldado, cientista, explorador, escritor e, durante boa parte da vida, agente secreto. Falava 29 línguas e muitos dialetos. Zanzou pela Índia, pela África Oriental, pela África Central, pisando em lugares nunca antes vistos por um europeu. Também traduziu obras raras que encontrou pelo caminho, como o “Kama Sutra” e “Mil e uma noites”, em 16 volumes. Sua vida foi tão louca e intensa que virara personagem das aventuras do escritor Rudyard Kipling.

Ele desembarcou por aqui como cônsul da Grã-Bretanha, indo viver em Santos, no litoral paulista. Não demoraria muito no cargo. Logo se embrenharia no Brasil profundo, partindo de canoa do Rio das Velhas e subindo o São Francisco até encontrar o mar. Sobre o ajoujo em que fez a viagem, escreveu: “Jamais vi embarcação tão decrépita, semelhante a uma carroça de ciganos flutuantes”. A travessia do São Francisco foi dura, marcada por enormes dificuldades com os acidentes naturais e as tempestades.

Ao longo da narrativa fluida, a ideia do país do futuro acompanhou Burton. Para ele, o Velho Chico, correndo terra adentro, representava o encontro com as riquezas e a possibilidade de uma nova civilização. Por outro lado, ele compartilhava do pensamento vigente entre as classes dominantes, de que, para progredir, o Brasil precisava, primeiro, branquear. Navegando entre o sentimento de superioridade racial e a habilidade de viajante experimentado, escreveu uma obra ao mesmo tempo geográfica e antropológica.

Em todos os lugares que atracou, Burton conviveu com a população local, trazendo para as páginas do seu relato personagens de carne e osso. Fazia observações curiosas. Em Juazeiro, enxergou alusões civilizatórias nas roupas velhas francesas de um barqueiro. Em Remanso, bebeu cerveja, algo que jamais esperou encontrar no sertão. Em Cariranha, encontrou um médico que lhe proporcionou um luxo inesperado: um sofá.

“Aqui a cana de açúcar e o abacaxi crescem naturalmente. O gado e outros animais de fazenda abundam e não haveria dificuldades em aclimatar o camelo. E a região tem um potencial de riquezas minerais que vai muito além do ouro, do ferro e dos diamantes que aqui já são explorados”, escreveu sobre o Vale do São Francisco.

No fim da viagem, Burton reclamou: “A hospitalidade é o que mais retarda as viagens no Brasil”.

 

Por Karla Monteiro

 

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