17/11/2017
O que será, que será?
Na região do MATOPIBA, considerada a última fronteira agrícola do mundo, a natureza e o agronegócio tentam encontrar um equilíbrio para coexistir
Talvez você nunca tenha ouvido esta palavra: MATOPIBA. Trata-se de um acrônimo, que une numa sonora sigla a área produtiva das divisas de quatro estados brasileiros: Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia. Embora pouca gente saiba exatamente o que é, o MATOPIBA vem alterando, para o bem e para o mal, o cenário agrícola do país. Abrange 337 municípios, em um total de 79 milhões de hectares e 5,9 milhões de pessoas. A cada ano, a produção ali cresce, o salto de 2014 para 2015, por exemplo, foi de 18 milhões de toneladas de grãos para quase 20 milhões. O território que atende por este estranho nome vem sendo coberto de soja e agora também se achegam outras culturas, como o algodão e o milho. O MATOPIBA carrega um superlativo: é a ultima fronteira agrícola em expansão do mundo.
“Já estamos assistindo ao desaparecimento de várias comunidades e povos tradicionais, devido à desapropriação de terras”, ressaltou a professora Eliane Maria Souza Nogueira, doutora em Ciências Biológicas (Zoologia) pela Universidade Federal da Paraíba. “As comunidades perdem elos importantes com a terra e não possuem sentimento de pertencimento com as novas localidades estabelecidas. Os jovens migram para os grandes centros urbanos em busca de empregos e não mais retornam às suas origens”.
O que o MATOPIBA tem a ver com o São Francisco? Na cadência perfeita da natureza, o Velho Chico é uma das pontas desta história, que envolve quatro personagens: o agronegócio, o Cerrado, o aquífero do Urucuia e o rio. Com o desaparecimento galopante da vegetação nativa, a água das chuvas deixa de infiltrar adequadamente no solo, comprometendo o aquífero do Urucuia. Sem o Urucuia, também explorado diretamente para irrigação, estará em risco todo o ciclo hidrológico que mantém vivo o Velho Chico. Segundo especialistas, somando-se desmatamento e o sistema de irrigação, o agronegócio já consumiu cerca de 75% do aquífero.
Para quem não sabe, um aquífero é uma formação geológica subterrânea, que funciona como um reservatório de água, sendo alimentado pelas chuvas que infiltram no subsolo. O Urucuia distribui-se por 120 mil quilômetros quadrados. O rio das Fêmeas e seus afluentes integram um dos sistemas de correntes perenes que drenam áreas de chapadas situadas à margem esquerda do São Francisco. São rios e riachos que compõem o balanço milenar do ciclo hidrológico.
O Cerrado
Para pesquisadores, o Cerrado é a floresta invertida, pois a exuberância está debaixo da terra, nas poderosas raízes. O bioma tem 11.627 espécies de plantas catalogadas, grande variedade de aves (837 espécies), de peixes (1.200 espécies), de répteis (180 espécies) e de anfíbios (150 espécies). Além de nascentes, que abastecem as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul: a do São Francisco, do Tocantins-Araguaia e do Paraná.
Segundo o WWF Brasil, organização internacional de proteção ambiental, o avanço da fronteira agrícola no MATOPIBA é um risco ambiental que não se pode ignorar. Por um lado, pequenos e médios produtores estão realizando plantios sem o manejo adequado e ações ilegais de desflorestamento do Cerrado. A Agro-Satélite registrou um crescimento de 61% no desmatamento, entre 2000 e 2014, enquanto nos outros estados que também contemplam o Cerrado, o ritmo do desmate caiu em 64%. Outro dado importante vem da consultoria Agroicone, que informou que a área reservada ao cultivo da soja na região aumentou 253%, também entre 2000 e 2014, sendo que 68% dessa expansão ocorreu em áreas de vegetação nativa.
“A mudança de uso do solo pode levar à erosão, emissões de CO2, aumento da intensidade de enchentes, perda de biodiversidade e mudanças climáticas, principalmente aquecimento regional”, comentou Marcos Heil Costa, engenheiro agrícola e Ph.D. em Climatologia pela Universidade de Wisconsin-Madison.
Ele continua: “Esses efeitos dependem da interação com outros fatores. Por exemplo: a erosão aumenta mais se a mudança de uso de solo ocorrer em topografias inclinadas, e pode não mudar em nada no caso de topografias planas. Ou a perda de biodiversidade só é relevante se a mudança de uso do solo ocorrer em regiões de endemismo de alguma espécie. Ou seja, existem consequências genéricas, mas que tem que ser avaliadas individualmente por região. No caso do MATOPIBA, onde a mudança do uso do solo é mais recente, essas avaliações estão muito atrasadas em relação a outras regiões onde ocorre desmatamento há mais tempo, como a Mata Atlântica ou a Amazônia.
Marcos Heil Costa
Não é obra do acaso o fenômeno natural da “floresta invertida”. Ainda de acordo com Heil Costa, o papel das raízes profundas é trazer água das camadas mais profundas do solo para as mais superficiais e, em seguida, devolvê-las para o solo, onde passam a ficar à disposição de outras espécies que não tem um sistema radicular tão profundo.
“Essa é uma estratégia de sobrevivência do ecossistema para um período de seca muito longo, como o que ocorre no Cerrado, e na fronteira Amazônia-Cerrado”, declarou o pesquisador.
Por ser um dos ambientes mais antigos da terra, o Cerrado já chegou no ápice da evolução e, uma vez degradado, dificilmente se recuperará, o que é diferente da mata atlântica ou da mata amazônica. É possível reproduzir em viveiro algumas espécies arbóreas da região, cerca de 180 espécies, das 13 mil existentes, mas estas dificilmente sobreviverão, pois não encontrarão as condições ideais para desenvolvimento.
Para a professora Eliane Maria Souza Nogueira, da Universidade Federal da Paraíba, a Caatinga já percorreu o caminho que agora se coloca à frente do Cerrado:
“No caso da Caatinga, faltou interesse político nas esferas estadual e federal, o que favoreceu a implementação de empreendimentos impactantes, com prejuízos para a biodiversidade, solo, vegetação e, consequentemente, alterações na fisionomia vegetal, do solo e clima”, concluiu a professora.
O Urucuia
Com o galope do agronegócio no MATOPIBA, o Sistema Aquífero Urucuia – SAU está penando. Para lembrar mais uma vez, ele é um dos grandes alimentadores da bacia do rio São Francisco, possuindo 120 mil quilômetros quadrados, espalhados por seis estados, com 80% da área localizada no oeste da Bahia. Considerado como um dos aquíferos interestaduais mais importantes do país, 50% das vazões médias dos rios da região precisam do Urucuia para sobreviver. O Velho Chico recebe permanentemente deste aquífero uma vazão correspondente a 40% de seu volume.
O golpe no Urucuia vem de dois lados. Além do desmatamento que come a mata nativa, impossibilitando a absorção das chuvas pela terra mal tratada, o agronegócio utiliza poços cada vez mais profundos para captação de água para irrigação. O estoque do subsolo foi tão prejudicado que mesmo se fortes chuvas caírem na região não serão suficientes: 75% do volume que foi retirado destinou-se a irrigação da agricultura, o que revela como a captação subterrânea afeta a disponibilidade de águas superficiais na bacia.
“A exploração desta reserva renovável, no todo ou, mesmo, em parte, através de poços tubulares de quaisquer diâmetros e profundidades, vai inviabilizar ou reduzir o escoamento de base, modificando o regime dos rios para efêmeros ou intermitentes”, comentou o geólogo e pesquisador das ciências hidrogeológica e hidrológica, José do Patrocínio Tomaz.
Segundo ele: “O aquífero Urucuia é o principal componente do sistema São Francisco, representando, segundo a ANA, cerca de 58% da vazão de base produzida por todo o sistema aquífero. A exploração descontrolada desta condição de supridor principal da vazão de base já está acontecendo, com os afluentes como o rio Verde Grande e outros deixando de ser perenes e passando a ser efêmeros, fluindo, apenas, quando ocorre a precipitação direta de chuvas sobre suas bacias hidrográficas”.
Movimento antropofágico
As plantas do cerrado possuem um terço de sua estrutura acima da superfície o que faz com que suas ramificações sejam profundas, para que possa sobreviver em um ambiente com um solo pobre em nutrientes. Quando existia excesso de água na região as raízes viravam verdadeiras esponjas encharcadas, vertendo todo o líquido não absorvido para lençóis freáticos, que posteriormente elas passavam para os aquíferos.
Tal dinâmica foi alterada em 1970, com a chegada da expansão agropecuária e as plantações de grãos e algodão pelo Cerrado. Os desmatamentos deram espaço para uma nova vegetação, com raízes curtas e incapazes de transportar a água para os aquíferos, sem falar que entre uma colheita e o replantio as terras ficam descobertas, possibilitando com que as águas das chuvas evaporem antes de serem absorvidas pelo solo.
Estudos apontam que em 2030 o planeta vai possuir 10 bilhões de habitantes e o potencial hídrico será 40% menor do que temos hoje. O Brasil detém 12% de toda a água doce do mundo e isso deixa claro os grandes motivos e interesses pelo Cerrado.
O Agronegócio
Vilão ou mocinho? Não existe resposta para tal pergunta. O setor representa 33% do Produto Interno Bruto (PIB), 42% das exportações totais e 37% dos empregos nos país. Em 2015 empregou 19 milhões de trabalhadores e, no ano seguinte, gerou mais de 75 mil novos postos de trabalho. De acordo com estudo realizado pelo Centro de Estudos de Economia Agrícola, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz de Piracicaba, SP, atualmente o agronegócio emprega mais de 19 milhões de pessoas, o que representa 20% do total de colocações no país. Tais dados referem-se ao total de trabalhadores que atuam nas empresas ligadas ao segmento e a todos aqueles que trabalham no campo.
“Se houver mudança de uso do solo, dentro da legislação (Código Florestal), em áreas onde essa mudança de uso do solo não é potencializada por interações com outros fatores locais e se essa mudança de uso do solo for efetivamente usada para produzir alimentos e trazer segurança alimentar, então, o agronegócio não é um problema”, disse Marcos Heil Costa, engenheiro agrícola e Ph.D. em Climatologia pela Universidade de Wisconsin-Madison.
Plantação de soja
De acordo com o engenheiro: “O problema é quando ocorre o desmatamento e, em poucos anos, a área é abandonada e não produz mais nada, como é o caso das pastagens degradadas, que totalizam aproximadamente 60 milhões de hectares no Brasil hoje, ou uma área do tamanho de Minas Gerais. Nesse caso temos o ônus ambiental do desmatamento, mas não temos o bônus econômico ou de segurança alimentar da mudança de uso do solo”.
Para Celestino Zanella a atividade agrícola é vital para o desenvolvimento do país: “Temos um código florestal em vigor, um dos raros no mundo. Deixamos as reservas de 20%, as áreas de preservação permanentes e o restante é utilizado para a produção de alimentos de forma que gere uma sustentabilidade econômica. Desconhecemos algum estudo científico sobre a utilização sustentável do solo que tenha ocasionado danos ao meio ambiente. Também podemos deixar de produzir, mas precisaremos parar de comer”.
O São Francisco – e outros rios
O geólogo Eduardo Antônio Gomes Marques, pós-doutorado pela The University of Queensland, na Austrália, levantou outra ponta desta equação: a água é um bem finito e o ciclo hidrológico é um sistema fechado para o planeta Terra, o que significa que não há perda nem entrada de água no sistema ao longo do tempo. O que há é água sendo retirada de um ponto e transferida para outro, por processos antrópicos diversos: transposição de rios, exportação de água, mineroduto, bombeamento de águas em poços para agricultura e etc.
Eduardo Marques
O presidente da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia – AIBA, Celestino Zanella, ressaltou a importância de estudos científicos para se preservar o aquífero Urucuia e, em consequência, o São Francisco e afluentes: “A utilização do aquífero Urucuia deve ter um estudo científico, mensurando o volume, a recarga, a profundidade, qualidade da água, o teor de matéria orgânica no cerrado nativo e nas áreas de lavouras, para que possamos assim de forma transparente e segura fazer políticas públicas perenes, sem paixões”.
Segundo Zanella, a convivência do agronegócio com a natureza é possível, desde que haja investimento em pesquisas. Ele cita o exemplo positivo ocorrido no estado de Nebraska, nos Estados Unidos. Lá, o aquífero Ogalala, explorado por mais de 100 mil poços, desde 1895, irrigando 3, 5 milhões de hectares, tem um volume de água hoje superior ao que tinha em 1920.
“No Nebraska, as políticas de uso das águas são decididas entre os 23 comitês regionais e só depois são debatidas com os comitês vizinhos, tornado assim políticas públicas sem intervenção do estado, que supervisiona o decidido. A federação só interfere se chamada”, concluiu Zanela.
Por Vítor Luz
Compartilhe: