29/09/2015
ENTREVISTA: Yvonilde Medeiros
“A base de uma boa gestão de recursos hídricos é a informação”
Renomada pesquisadora da área de recursos hídricos do país, doutora em Hidrologia pela Universityof Newcastle Upon Tyne – UK, mestre em Hidráulica e Saneamento pela Universidade de São Paulo e graduada em Engenharia Civil pela Universidade Federal da Bahia, Yvonilde Dantas Pinto Medeiros explica nesta entrevista como os resultados do seu trabalho sobre as vazões ambientais poderão contribuir para as discussões sobre redução das vazões mínimas das principais usinas hidrelétricas do rio São Francisco. Além disso, a professora faz uma análise sobre a gestão atual de recursos hídricos do Brasil, destacando o papel desempenhado pelo Comitê do São Francisco nesses últimos anos. Ela ressalta ainda a importância de se debater a alocação das águascomo fator preponderante para a efetividade da atualização do plano de bacia do São Francisco, igualmente para o esperado Pacto das Águas.
A crise hídrica é um tema que assusta muitos brasileiros, apesar de ser uma velha realidade conhecida dos nordestinos. A gravidade da seca ganha a sua devida importância no momento que a escassez de água atinge estados como São Paulo e Rio de Janeiro?
Yvonilde Medeiros–Eu não afirmaria isso com muita certeza. Em locais onde já aconteceram crises similares de escassez de água, seja devida à estiagem, sejapor aumento populacional,os conflitos ficam muito intensos, fazendo o tema ganharuma relevância enorme. Mas devido à variabilidade do clima e do próprio ciclo hidrológico, daqui a um ou dois anos podemos estar vivendo uma época de abundância de água. Aí será possível que tudo volte ao normal e se ignore o problema. Em alguns países existiram crises que resultaram em pactos e acordos de renegociação de direito de uso de água.Parecia que tudo iria caminhar para um final positivo. Poucos anos depois, acabou a estiagem e o assunto morreu. Acho que o que nós vivenciamos agora realmente é uma crise que tende a se acentuar devido ao aumento de demanda, agravadatambém pelo uso intensivo dos recursos hídricos no Sudeste, junto com a estiagem severa. Essa estiagem pode até acabar, mas a demanda vai continuar aumentando ou pelo menos vai se estabilizar, e essa crise não vai desaparecer totalmente. Eu espero que, em função disso, tenhamos alguma consciência dessa limitação dos recursos hídricos, e que as autoridades, juntamente com sociedade em geral, criemuma reponsabilidade com relação àágua.
A crise hídricaé uma oportunidade para se conseguir essa tão sonhada conscientização ambiental?
Yvonilde Medeiros–Sim. Porque, por exemplo, no semiárido nordestino já ocorreram períodos muito mais graves do queo que está acontecendohoje. A proporção atual é maior porque atinge pessoas que não estavam acostumadas. Foram surpreendidas. No Nordeste, as pessoas estão habituadas a ficar até nove meses sem chuva, a fazer economia, reúso da água, utilizando água de baixíssima qualidade. Em várias partes, as pessoas vivem onde tem água. E ela é usada de forma simultânea, para todos os usos. Essa é uma realidade. Mas são pessoas ocultas, não é mesmo? A maioria não enxerga. Agora, quando isso chega a consumidores mais exigentes, pessoas acostumadas a tomar banho de chuveiro, lavar carro e molhar o jardim, a problemática se torna mais alarmante.
Em recente entrevista, a senhora revelou que, desde 1970, pesquisadores já alertavam para o crescimento da demanda por água no Brasil. Acredita que a atual conjuntura é resultado damá gestãodos governantes e, sobretudo, do não entendimentoda população da importância de preservar os recursos hídricos do país?
Yvonilde Medeiros–No geral, não há conscientização. Só com a crise éque as pessoas começam a ter consciência. Infelizmente. Às vezes, temos quer perder um pouco ou sentir a ameaça de perder para valorizar. É o caso da água. Talvez nós tivéssemos que ser impactados de vez em quando com esses sustos para percebermos o quanto é importante, o quanto é vital a água pra vida, em quantidade e qualidade.
Como a senhora avalia o sistema de recursos hídricos do País?
Yvonilde Medeiros– Nós temos uma legislação que pode vir a dar bons resultados em algumas regiões do país. Temos um modelo que foi criado voltado principalmente para as regiões Sul e Sudeste. Está adequado para estas regiões. Porém, para outras, principalmente para o semiárido, ela ainda precisa avançar. Isso eu falo com relação à legislação. Ainda tem a questão das instituiçõescom baixa capacidade de ação (por falta de recursos ou por falta de pessoal capacitado)…Existe um desequilíbrio muito grande na gestão de recursos hídricos do país. Se você for comparar a gestão das águas em rios da União com a dos rios estaduais, podemos dizer que a primeira avançou muito mais que a segunda. Não avançou ainda mais rápido porque precisa da resposta da sociedade, mas avançou dentro do esperado. Nos estados,fica muito em função do governo. Às vezes avança. Às vezes recua. Depende da conjuntura política do momento. Um dos grandes problemas da governança é a falta de confiança. Se a pessoa não tiver confiança, vai dizer, por exemplo, que está tendo “farra” de outorgas. Além disso, a informação é a base para tudo isso. Quando as pessoas conhecem melhor sobre o assunto elas tendem a confiar. A base de uma boa gestão de recursos hídricos é aprimorar a informação. Um dos pilares é a transparência. Para isso,precisamos de bons técnicos, bons instrumentos, e disponibilizar informações não só para esses técnicos especialistas, mas para o público leigo, que hoje é a grande maioria.
O CBHSF atualmente está em fase de atualização do seu Plano de Recursos Hídricos para o decênio 2016–2025. A senhora foi uma das especialistas que contribuíram para a construção do primeiro plano da bacia do rio São Francisco. Como enxerga a importância deste “novo” plano para o Comitê?
Yvonilde Medeiros–Este segundo plano, esta revisão, vem num momento em que o CBHSF está mais maduro. Ele nasce no âmbito de maior tranquilidade. O comitê jápossui todos os instrumentos instalados. É um comitê bemestruturado, e acredito que este plano vai trazer discussões ricas. Vai ser um avanço com relação ao primeiro. Eu tenho uma expectativa muito grande em conseguir bases sólidas para a discussão de uma boa alocação de águas na bacia. Foi uma coisa que não conseguimos debater na última vez. Estabelecer direitos e obrigações de cada estado com relação à quantidade de água que é usada por cada segmento, o quanto cada estado inserido na bacia tem direito a usar. Pra mim, esse é um problema grave. Porque a qualidade da água que vem sendo devolvida ao rio principal é péssima, tendendo a se agravar se não resolvermos esse problema logo. Eu espero que esse plano possa estabelecer a real quantidade de uso para os diversos setores que se utilizam do São Francisco. E, claro, depois disso,partir para as soluções e definição das ações que deverão ser tomadas por cada segmento. Espero que este plano seja, realmente, um documento norteador para o CBHSF e, também, para as autoridades que visam à preservação do Velho Chico.
Na última plenária do CBHSF, em Maceió, a senhora apresentou ao colegiado um minucioso estudo sobre as vazões ambientais no Baixo São Francisco, entre os estados de Alagoas e Sergipe. Como foi desenvolvido este trabalho e quais foram os resultados obtidos até então?
Yvonilde Medeiro – Ele continua sendo desenvolvido porque a primeira fase do trabalho, chamado de EcoVazão, foi resultado de um edital do CT-Hidro, com recursos da União, e que formou uma rede de pesquisa com diversas universidades localizadas nos estados da bacia, tendo aUniversidade Federal da Bahia como coordenador do projeto. Cada universidade desenvolveu um aspecto deste estudo. Gente estudando a parte de peixes; outros estudando vegetação; hidrodinâmica; hidrologia; entre outros. Esses estudos resultaram numa sugestão de hidrograma ambiental, que é uma quantidade de água variável ao longo do ano, que atenda às necessidades do ecossistema aquático e da população ribeirinha. Não é ecológico apenas. Leva em consideração a sociedade ribeirinha. O Baixo São Francisco foi escolhido porque, talvez, seja a região que mais sofre pelo uso em toda a bacia. Todos os desequilíbrios de uso na bacia do São Francisco repercutem no Baixo.
Esses resultados poderiam ser aplicados no contexto de toda a bacia hidrográfica?
Yvonilde Medeiros–O resultado dele é para o Baixo São Francisco. Mas esse tipo de estudopode servir de modelo para outras regiões do rio São Francisco e, também, do país. Agora, estamos desenvolvendo outra rede de pesquisa que se chama HidroEco. Essa segunda rede envolve também outras universidades, que, necessariamente,não estão na bacia, mas que estão estudando os seus rios e fazendo comparação dos resultados. O que nós, da Ufba,estamos estudando é que, uma vez tendo o hidrograma ambiental, saber qual é o impacto da implementação desse hidrograma nos outros usos? Estamos estudando alocação. Ou seja, hoje o modelo adotado é o de vazão mínima. Esse hidrograma não se preocupa com valor, mas sim com a sazonalidade. Claro que estabelecemos um valor. Mais importante que o valor é manter a sazonalidade. Que haja essa compensação com a própria natureza entre o período de abundância e o período de estiagem.
Como podem ser explicadas as diferenças entre vazão ambiental e vazão mínima?
Yvonilde Medeiros–O conceito de vazão ambiental leva em consideração a quantidade, qualidade e duração de água que deve ser mantida no rio para atender às necessidades, função e componentes do ecossistema aquático do qual a população ribeirinha depende. É a quantidade que varia sazonalmente. Ou seja, varia de acordo com as estações do ano. Maior em períodos de cheia, menor no período de estiagem. Isso é diferente do conceito que tínhamos anteriormente de vazão mínima. A vazão mínima é uma vazão constante que deve ser mantida no rio. Ela é baseada, em geral, apenas em estudos hidrológicos. Não leva em conta a demanda e especificidades do ecossistema. Para gerar energia, o setor elétrico armazena água nos grandes reservatórios em período da cheia.Nos períodos de estiagem, eles regularizam, soltam mais água. Quer dizer, o ciclo natural é invertido, enquanto que o hidrograma é variável. E essa variabilidade acompanha a variabilidade natural das estações do ano.
Em sua opinião, esse estudo forneceria a base para uma proposta de solução a ser apresentada pelo CBHSF em contrapartida às apresentadas pelo setor elétrico nas discussões que têm determinado a redução da vazão dos principais reservatórios da calha do rio?
Yvonilde Medeiros–Sim. Não é exatamente uma contrapartida. É um modelo que gostaríamos que fosse implantado naquele local, neste caso, no Baixo SF. Agora, o setor elétrico terá que se adaptar a ele porque hoje o modelo de geração de energia é baseado no conceito de vazão mínima. Ele teria que se adequar com o conceito. Não é uma coisa simples. Ele terá que modificar algumas coisas. Mas eu não sinto uma resistência do setor elétrico. Claro que ele tem os seus receios, mas se isso fosse decisão do plano de baciaeles certamente atenderiam. É um caminho. Vai se adequar no futuro. Outros países se adequaram, e o Brasil não será diferente. Vamos encontrar uma saída.
O próprio setor elétrico concordaria com esse estudo, uma vez que restringe a geração de energia das hidrelétricas?
Yvonilde Medeiros–Eu não acho que vai restringir. Eles vão ter que se readequar. Mas ainda não sei. É por isso que estou estudando qual o impacto da adoção deste hidrograma para os outros usos. Tanto para o setor elétrico quanto para os demais. Ainda não temos nenhum resultado, então não posso dar uma resposta concreta. No momento que tivermos esse resultado, vai ajudar nas discussões. Não estou dizendo que vai resolver. Estamos aqui para trazer informações. O nosso trabalho é sempre no sentido de trazer discussões para melhorar o nível de discussão dentro do Comitê. Então, apresentamos o hidrograma como uma contribuição da academia para um modelo de vazão que atenda à demanda do ecossistema, que não seja aquele modelo acostumado pelas barragens do Brasil, esse conceito de vazão mínima. É preciso mudar o conceito de vazão de jusante. Mudar o conceito de vazão mínima para o conceito de que o ecossistema também é um usuário. Agora, é o próprio comitê quem vai decidir e aprovar se esse estudo é adequado ou não para todos os usos.
Na prática, é possível conciliar os interesses do uso hidroelétrico com os demais usos, principalmente navegação e irrigação em grande escala?
Yvonilde Medeiros–Tem uns conceitos interessantes sobre alocação de água que vem desde antes de Cristo. Eu mesmo nem sabia que vinha de tão longe essa discussão. Chama-se de Código de Hamurabi, de 1700 a.C. Um rei da Babilônia, na Mesopotâmia, éque traz a primeira definição de alocação de uso da água. Ele criou códigos e regras, além de direitos, para as pessoas. Elas tinham responsabilidades, e caso houvesse algum problema ou dano com esse uso, teriam que compensar com valores estabelecidos. Foram as primeiras regras de uso compartilhado de água. Muito interessante. Depois vieram outros códigos, a exemplo do Tribunal da Água, na Espanha. Então, é possível, sim, conciliar. O Brasil não é diferente de nenhum outro país. Todos eles passaram por conflitos semelhantes aos nossos. Eu volto a dizer: com informação, cooperação e conhecimento é possível você chegar a um bom acordo de uso de água, de alocação entre os estados, e também de usuários. Se buscar uma forma de sobrevivência. É o que eu espero, e que acho que o São Francisco vai chegar. Não sei quando. Se vai ser nesse plano de bacia ou no próximo. Caminhamos para isso. É um processo que estamos melhorando. O problema é que sempre queremos que seja rápido. Mas não será.
A senhora fala muito em alocação de água. Esse é um caminho para o Pacto das Águas?
Yvonilde Medeiros–Sim. Primeiro você define a alocação de água e depois pactua. A primeira proposta feita ao CBHSF foi para uma repartição por estados. Quanto cada estado pode usar da água do rio? Então aí se faz uma alocação tanto da quantidade que cada estado usaria e, também, da quantidade que cada um se obriga a devolver para o rio. Feita essa proposta de alocação, isso é discutido e aprovado pelo colegiado do CBHSF. Essa proposta de alocação por estados foi inicialmente apresentada no primeiro plano. Não houve acordos. A intenção é que a discussão retorne nesta revisão que está sendo feita, pois é uma forma de minimizar conflitos. Existem duas formas de repartir, de alocar. Por estado e por usos. É aí que chegamos ao chamado Pacto das Águas. Agora, para se chegar a esse Pacto das Águas, a primeira etapa é definir qual é a parcela de direito do meio ambiente. Por isso que defendo muito a vazão ambiental. Ele é uso de todos. Primeiro reparte quanto vai para o meio ambiente e depois distribui o resto. Ele é condição para definir alocação. Tem que ter alguns acordos antes de se chegar a essa alocação. Não é uma discussão fácil. Eu não sei se o Comitê está maduro o suficiente para passar por essa discussão.
Por fim, a senhora foi uma das fundadoras do CBHSF. Já desempenhou a função de secretária executiva, coordenadora, membro da diretoria colegiada… No ano de 2016,o CBHSF completa 15 anos de fundação. Qual o balanço que a senhora faz deste comitê de bacia?
Yvonilde Medeiros– O meu balanço do Comitê do São Francisco é altamente positivo. Eu acho que ele evoluiu. Nós achamos que 15 anos é muito tempo, mas para um comitê não é. São interesses conflitantes. O que precisamos achar é uma melhor forma de compartilhar usos. Para isso, precisamos de cooperação e informação. A crise da transposição fez com que o Comitê nascesse. Foi a primeira crise. Ele teve o seu primeiro plano. Teve todos os seus instrumentos instalados, inclusive cobrança e agência. Posso dizer que é um comitê maduro. Maduro no seguinte sentido: ele é um fórum de discussões que possui todos os instrumentos para tomar grandes decisões. Agora, ele ainda não tem força política. Houve muitos desgastes que fizeram com que ele não tivesse essa força esperada nesses 15 anos. A transposição atrasou muito a evolução das outras discussões. Estávamos aprisionados. Foi o que fez nascer o comitê, mas, por outro lado, segurou muito a pauta do comitê. Criaram-se também desconfianças e desgastes entre o CBHSF e as instituições, tanto de estado quanto de União. Tendo agora um momento de ambiente mais favorável para discussões, que é onde está essa maturidade, vejo para os próximos dez anos um cenário de desenvolvimento mais rápido do que os últimos 15 anos. O Comitê está mais fortalecido, não politicamente, mas de estrutura e arcabouço legal e institucional. Esses instrumentos estão avançando bem. O que precisamos agora é avançar com a base que temos, principalmente com relação à informação, à transparência e ao equilíbrio de forças. Muitas vezesainda enxergo o comitê se posicionando apenas como sociedade civil, e ele não é. O comitê precisa ser realmente o centro de todas as discussões e de resolução dos seus conflitos. Mas para isso ele precisa ser reconhecido nesse papel, nessa arena. Ainda existe um desequilíbrio muito grande de forças. Ele tem que se comportar como uma instituição pública, um agente público, com uma força política que ele ainda não está exercendo de forma adequada. Precisa, de fato,de mais maturidade política.
*Esta matéria foi veiculada na Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 06 | MAI 2015. Para ler a revista completa, acesse.
ASCOM – Assessoria de Comunicação do CBHSF
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