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23/10/2017

Todo dia é dia de índio

Morando a sete quilômetros das margens do São Francisco e abastecidos por caminhões pipa, os índios da etnia Pankará acabam de assinaram um termo de cooperação técnica com o CBHSF para a construção de uma adutora, que vai levar água potável para a aldeia Serrote dos Campos, no interior de Pernambuco

Após décadas de batalhas ganhas e perdidas, o povo Pankará reconquistou o seu território, no município de Itacuruba, em Pernambuco. A Aldeia Serrote dos Campos assenta-se hoje sobre o solo sagrado dos antepassados, povoado de encantos, histórias, tradições, memórias e solidariedade. Composta por 480 índios, a comunidade tradicional passa os ensinamentos e crenças de geração em geração, permitindo que os preceitos indígenas não se percam como as águas do Rio São Francisco. Há cinco anos os Pankarás lutam pela construção de uma adutora. Mesmo morando a 7,5 quilômetros das margens do rio, não têm água potável em casa.

O caminho para chegar à Aldeia Serrote dos Campos é ladeado por paisagens que mudam de acordo com o passar das horas e a velocidade do carro. O inverno traz consigo as chuvas e o brilho intenso e vivo da Caatinga, que no verão foi colorida em tons de cinza. Nesta mesma estrada passamos pelo rio Pajeú e somos embalados pela música Riacho do Navio, de Luiz Gonzaga, que em seus versos falam: “Riacho do Navio corre pro Pajeú. O Rio Pajeú vai despejar no São Francisco. O rio São Francisco vai bater no “mei” do mar”.

Ao chegar à Aldeia, o visitante se depara com o chão de terra batida, casas de taipa, pequenas estações de roça, crianças correndo de um lado para o outro, bodes com chocalhos no pescoço andando soltos pela Caatinga, sorrisos largos e olhares repletos de expectativa de um povo acolhedor. A recepção é alegre. As cerimônias de boas vindas são iniciadas com orações, invocando os “Encantados de luz” e a “Mãe Natureza”. Com os pés bem plantados no chão, os pankarás dançam, fortificando a tradição.

O Velho Chico é o sustento desse povo, que o tem como um guardião da sabedoria ancestral. Da aldeia à margem, os Pankará percorrem mais de sete quilômetros. A paisagem encanta. E o cenário é marcado por árvores secas, solo pisoteado por animais em busca de água – e também por resquícios do tempo de fartura. Há seis anos a região não vê fortes chuvas, o que afetou a lavoura e a pesca.

A luta do povo Pankará agora é pela construção de uma adutora, que vai levar água potável à aldeia. Atualmente o abastecimento hídrico é feito por meio de carro pipa. Na XXXII Plenária Ordinária do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), que aconteceu no hotel Golden Tulip, em Recife (PE), Cícera Cabral, representante dos Pankará, assinou um termo de cooperação técnica que autoriza a construção de uma adutora para o povo Pankará.

“Estamos sonhando que vamos ter água descendo por nossas torneiras. A adutora vai possibilitar uma melhor qualidade de vida para nossa comunidade, pois não é fácil ver sua filha acordar à noite com fome e você não ter água em casa para preparar uma mamadeira. Estamos muito esperançosos e acreditamos que logo chegará”, disse Cícera.

 

Serrote dos Campos

 Nos idos do século 17, o povo Pankará iniciou sua saga pela sobrevivência, na fuga eterna para escapar da colonização. Na incessante busca por lugares de difícil acesso aos portugueses, encontrou a Serra do Arapuá. Para sobreviver nos períodos de seca, desciam a serra para dar nas centenas de ilhas de Itacuruba, enfeitadas por árvores frutíferas que, anos depois, seriam alagadas pelas águas da barragem de Itaparica, em 1988. Todos os esforços não foram suficientes e os Capuchinhos vindos da Itália, juntamente com o Governo de Pernambuco conseguiram catequisar os indígenas.

Nos séculos seguintes, Serrote dos Campos funcionou como um ponto de encontro entre o povo Pankará e os Tuxas, que seguiam para lá para os rituais sagrados, para descansar e cultuar os Encantados, longe dos olhos cristãos e às margens do São Francisco. Com o passar dos anos os Pankará foram ficando pela região, plantando, pescando e estabelecendo residência.

“Durante nossa busca incessante por território chegamos aqui. Foi como se os Encantados de Luz e a Mãe Natureza estivessem nos recepcionando e abraçando. Todos ficamos arrepiados, inclusive os cabelos da cabeça e, naquele momento, nós tivemos certeza de que era nosso lugar, nos sentimos acolhidos”, disse a cacique Lucélia Cabral.

 

Cultura & Costumes

Em Serrote dos Campos, a atual geração do povo Pankará construiu uma Oca que, logo no começo, ainda sem energia, abrigou mais de 15 famílias. As redes ficavam penduradas sobre colchões no chão. Conhecida também como “Mãe Oca”, o lugar é agora a casa das tradições, onde os índios realizam os “Torés”. A construção foi, segundo a crença indígena, guiada pelos “Encantados de Luz”, que deram sabedoria aos mais velhos. As mulheres cuidaram das palhas que compõem o telhado e os homens ficaram com o restante da edificação. Há 12 anos a Oca está de pé.

Sempre que um índio adentra a Oca, diz, revelando o sincretismo religioso: “Louvado seja o Senhor Jesus Cristo” e todos os que já estão no recinto respondem “para sempre seja louvado”. As cerimônias iniciam com orações. As lideranças indígenas acendem seus Caquis e o ritual de purificação é iniciado. Os homens devem ficar juntos, assim como as mulheres. Os cânticos são entoados em uníssono. Após as orações, começa a dança.

 

Educação 

A Aldeia possui um centro de educação. A Escola Estadual Indígena Josefa Alice da Conceição conta com 12 professores e atende 99 alunos. As aulas são compostas por ensinamento “dos brancos” e por conhecimentos indígenas, para que as crianças possam crescer conhecendo a história de seu povo.

As crianças chegam animadas para as aulas, com livros, cadernos e bolsas de Caroá. Antes do início da programação letiva os alunos rezam o Pai Nosso, uma Ave Maria e agradecem aos Encantados de Luz, a Mãe Natureza e todos os seres viventes por estarem ali. De pés descalços cantam e dançam.

“Sempre começamos o dia assim, nossas crianças precisam ser ensinadas desde muito pequenas, para que nossa cultura possa ser fortalecida em seus corações para que eles nunca venham a se esquecer de suas raízes”, afirma o contra-mestre , Geraldo Leal.

Com o cair da noite as crianças vão para casa e novos alunos chegam à escola: é a hora do projeto de Educação de Jovens e Adultos – EJA. Aproximadamente 25 alunos estão buscando terminar os estudos, e uma delas é a índia Odete Margarida de Santos, 58: “Não tive oportunidade de estudar quando criança, meus pais eram muito rígidos e não me permitiam ir à escola. Comecei a escola com 58 anos. Hoje consigo ler e estou achando ótimo”.

 

“Conheço o São Francisco há mais de 50 anos. Até a década de 70 vivíamos de vazante, tínhamos época de plantar, época de colher e época de não fazermos nada, pois era o tempo dele se recuperar. Quem morava na beira do rio não conhecia a seca, pois a gente tinha tudo, éramos ricos e não sabíamos”.

(Juremeira Fernando, ex-pescador)

 

“No passado, quando não tínhamos barragens, a gente ia pescar e o peixe não vinha, então jogávamos um pedaço de fumo para o Nego D’água ai os peixes apareciam. Acreditávamos que isso era verdade, os mais velhos faziam e a gente procurava fazer”.

(Jorge Leal, liderança indígena)

 

“Conheci esse rio mais cheio, os peixes existiam em fartura, mas hoje não consigo pescar o suficiente. Os peixes nativos não existem mais e só encontro peixes que são criados em cativeiro e soltos aqui. Essa realidade me deixa triste”

(Claudiano Carvalho, pescador)

 

“Sempre escuto meu pai falar dos tempos do São Francisco e fico triste. O rio era farto, água abundante. Moramos na beira do rio e não temos acesso a água. Senão fizermos nada hoje, não teremos um amanhã”

(Edson Leal, professor)

 

Veja fotos dos Pankarás

 

Por Vitor Luz

Fotos: Edson Oliveira

 

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